Advogada do escritório publica artigo em livro da OAB Nacional sobre direito das mulheres
A advogada do escritório, Laura Maeda, é uma das autoras do livro “Igualdade, Liberdade e Sororidade”. De autoria da Ordem dos Advogados do Brasil Nacional (OAB), a obra reúne artigos de selecionados e que foram apresentados durante a III Conferência Nacional da Mulher Advogada”, evento que é realizado a cada três anos.
“Apesar dos avanços alcançados nos últimos tempos, muita desigualdade de gênero ainda se evidencia no dia-a-dia, e em diferentes âmbitos. A produção de livros como este, construídos dentro de espaços institucionais como a OAB, em muito contribui para fomentar a consciência de gênero e a representatividade das mulheres em espaços de poder, valorizando e fortalecendo também a própria advocacia, cuja atuação vai muito além dos muros institucionais.”, explica a advogada.
Todos os trabalhos publicados no livro são produzidos, unicamente, por advogadas com a temática da defesa dos direitos das mulheres. “São textos enxutos, mas contundentes na defesa dos direitos das mulheres nas mais diversas vertentes, como na advocacia, política, reforma da previdência, violência obstétrica, violência doméstica, racismo, direito do trabalho, entre outras. Como indicaram as organizadoras do livro, os trabalhos nele reunidos evidenciam o grau de maturidade galgado ao longo do tempo nesses debates, sendo, ainda, um convite para reflexões mais aprofundadas em direção de ações concretas para minorar a diferença de gênero da forma mais ampla possível”, completa Laura.
Para baixar, de forma gratuita, o livro clique aqui.
- Publicado em Destaque Advocacia, Notícias
Opinião: “O lobo pode perder seus dentes, sua natureza jamais”
Michel Temer e parlamentares proporcionaram aos brasileiros um retorno a tempos sombrios da nossa história recente, que muitos preferiram esquecer. Por proposição do Deputado Federal Esperidião Amin (PP-SC), foi aprovada e, em seguida sancionada, a Lei 13.491/2017 que modifica o art. 9º. do Decreto-Lei 1001 de 1969 para atribuir à Justiça Militar a competência para processar e julgar militares das Forças Armadas que cometam crimes dolosos (com intenção) contra a vida de civis.
Distraidamente, poderíamos pensar que se trata de livrar-nos dos resquícios do autoritarismo, no entanto, foi modificado para se tornar o mesmo de 48 anos atrás, época da mais acirrada ditadura militar. Os termos da nova lei são muito simples, não passam de 15 linhas, algumas referências e apenas um artigo. Quase nada, não fossem as implicações terríveis que pode acarretar e o simbolismo desse ato. É importante a contextualização histórica para que as afirmações não sejam tomadas por levianas.
Em 1967, havia-se delegado aos Tribunais Militares processar e julgar civis que praticassem crimes contra a Segurança Nacional. O Decreto-Lei 314 de março de 1967, dispunha no art. 44 que ficavam “… sujeitos ao foro militar, tanto os militares como os civis, na forma do art. 122, § 1º e 2º, da Constituição promulgada em 24 de janeiro de 1967, quanto ao processo e julgamento dos crimes definidos neste decreto-lei, assim como os perpetrados contra as instituições militares”.
Eram considerados crimes para esse efeito, qualquer tipo de protesto contra a “ordem vigente”, incluindo, na forma dos termos utilizados, a “ditadura de classe”, a “guerra psicológica”, “prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva” e melhor especificado em dois parágrafos do art. 3º:
2º: “a guerra psicológica adversa é o emprego da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais”. E continua no § 3º: “a guerra revolucionária é o conflito interno, geralmente inspirado em uma ideologia ou auxiliado do exterior, que visa à conquista subversiva do poder pelo controle progressivo da Nação”. O regime militar deixou explícito que todos os movimentos populares, de qualquer ordem, constituíam-se em ação contrária à Segurança Nacional, submetendo seus atores ao poder militar.
Nos anos seguintes, agravou-se a situação. A sociedade brasileira estava sob o julgo do Ato Institucional no. 5 (AI 5 de 13 de dezembro de 1968), a norma mais violenta da repressão, utilizada para suprimir todos os direitos civis e políticos, fechar as Casas Legislativas do país, intervir em estados, cidades, sindicatos, partidos políticos. Nessa conjuntura, foi promulgado o Decreto-Lei 898 de setembro de 1969, a nova – Lei de Segurança Nacional – que instituiu, entre outros, as penas de morte e prisão perpétua, curiosamente aplicadas também a “assalto, roubo e depredação” de “estabelecimentos de crédito ou financiamento” (somente modificada em 1978).
Igualmente em outubro de 1969, editaram o AI6 e os Decretos-Leis 1001, 1002 e 1003, mantendo a competência da Justiça Militar da União para julgar crimes cometidos por militares contra civis.
Apenas com a Constituição Federal de 1988 foi derrogada a malfadada norma e reduzida a competência da Justiça Militar (art. 124 da CF/88) excluindo a segurança nacional que passaria a ser julgada pela Justiça Federal. Mesmo assim, a discussão não cessou até que a chacina do Carandiru, com suas 111 mortes, indignou o mundo, e por essa razão foi apresentado, em maio de 1992, projeto que se tornou a lei 9.299 de agosto de 1996, alterando o art. 9º. do Código Penal Militar, com a inserção do parágrafo único para que crimes dolosos contra a vida de civil fossem de competência da justiça comum.
Os argumentos dos integrantes da Polícia Militar à época, em defesa da corporação, não deixam dúvidas quanto à necessidade e à importância de que todos estejam sujeitos às mesmas leis, à mesma justiça, inclusive submetidos ao Tribunal do Júri, em se tratando de crime comum.
Fato é que a nova alteração da era Temer fará do civil duas vezes vítima. A primeira, pelo crime praticado contra ele e a segunda, pelo julgamento do criminoso por sua corporação.
O que pode justificar tal medida? Nenhum argumento apresentado é plausível ou tem lógica transparente.
No momento que clamam pela extinção do foro especial para cargo político, cria-se a excepcionalidade. Enfatizo: crimes comuns dolosos previstos no Código Penal, praticados por militar das Forças Armadas contra civis serão julgados pela Justiça Militar. Não é crime de deserção, não é crime da caserna. É contra a vida dos comuns.
Feita a primeira crítica surge a interrogação: o texto legal aponta como exceção a sua aplicabilidade, em caso de “atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou atribuição subsidiária”. Mas estariam, as possibilidades verdadeiramente enumeradas?
Não! Por que, afinal o que é a garantia da “lei e da ordem ou de atribuição subsidiária”? É a repressão aos traficantes na Rocinha ou no Morro do Boreu, com licença para matar? Ou se tratam também das manifestações do MST, MTST, dos Sindicatos, dos partidos políticos? A interpretação fica sujeita à discricionariedade do Presidente da República e do Ministro da Defesa.
Será revigorada a lei de Segurança Nacional de outubro de 1969? Há defensores, pasmem, da lei sancionada em 1983 pelo general João Figueiredo, mesmo que em seu texto ainda remanesçam expressões como “luta violenta entre classes”.
Sórdido é o argumento da atualização das leis quando só vemos retrocesso. Todas as justificativas nos remetem ao regime ditatorial.
Passo a passo, com os mesmos parceiros, rumamos para o mesmo fim?
A ninguém é dado o direito de pensar em solução possível que não seja pelos meios democráticos.
A democracia deve ser defendida a qualquer custo.
*Mírian Gonçalves, advogada de trabalhadores há 35 anos, mestra em Direito das Relações Sociais pela UFPR, sócia-fundadora dos institutos DECLATRA e Instituto Direito e Democracia (IDD), vice-prefeita de Curitiba pelo PT, gestão 2013-2016.
- Publicado em Destaque Advocacia, Destaque Instituto, Notícias
Matéria do jornal “El País” destaca artigo do advogado do Declatra, Ricardo Mendonça
A versão brasileira do jornal “El País” traz uma longa matéria sobre a Reforma Trabalhista com referência ao artigo do advogado do Instituto, Ricardo Nunes de Mendonça, sobre o tema.
Veja a matéria:
Votação de reforma trabalhista testa base de Temer para mudanças na Previdência
Em questões trabalhistas, o que for negociado dentro de uma empresa entre patrão e empregado vai prevalecer sobre o que for legislado. O tempo para o trabalhador se aposentar pela Previdência Socialpode chegar a quase cinco décadas se ele quiser receber o teto das pensões. E a partir de agora, todas as atividades de qualquer empresa, pública ou privada, podem ser exercidas por funcionários terceirizados. Se tudo caminhar como tem se desenhado em Brasília, até o fim do ano essas serão as três principais marcas deixadas pelo curto Governo de Michel Temer (PMDB). Ainda que nas últimas semanas o Planalto tenha sofrido um revés temporário , o Governo começa a pressionar seus aliados para não perderem nas votações do Legislativo. O combo de reformas trabalhista-previdenciária (o que inclui a lei da terceirização recém-aprovada) será uma das principais mudanças legislativas desde a criação das regras que regulam o trabalho no Brasil.
Todos têm uma opinião sobre o assunto. De um lado, há sindicatos laborais dizendo que está havendo uma afronta aos direitos trabalhistas. Do outro, representantes patronais defendem todas as mudanças e dizem que é preciso alterar regras antigas, que duram desde a década de 1940, quando foi criada a Consolidação das Leis do Trabalho, criada no governo Getúlio Vargas. Já o Governo, argumenta que as reformas são necessárias exatamente para garantir mais empregos e segurança jurídica às empresas para que elas possam ampliar as contratações.
Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Confederação Federal de Economia (Cofecon) estão entre os representantes da sociedade civil que são contrários ao açodamento dos debates. As três entidades emitiram uma nota na semana passada tratando das reformas, principalmente a da Previdência. “Nenhuma reforma que afete direitos básicos da população pode ser formulada, sem a devida discussão com o conjunto da sociedade e suas organizações. A reforma da Previdência não pode ser aprovada apressadamente, nem colocar os interesses do mercado financeiro e as razões de ordem econômica acima das necessidades da população”, diz trecho do documento.
Com relação à reforma Trabalhista, o presidente da OAB, Claudio Lamachia, também reclama da falta de debates com a sociedade. “Aprovar uma reforma trabalhista controversa, de modo açodado, significa assumir o risco de esfacelar completamente a solidez das instituições e os direitos conquistados pela cidadania, a duras penas, nas últimas décadas”.
Mas o Governo tem pressa e decidiu focar as mudanças que estão em sintonia com quem lhe dá apoio político. Desde que assumiu a presidência após o afastamento e consequente impeachment de Dilma Rousseff (PT), conta com amplo apoio legislativo e empresarial, mas reduzidíssimo suporte popular (hoje amarga menos de 10% de aprovação). Com sua base no Congresso e o consentimento de quem administra as grandes fortunas, sente-se à vontade para tocar projetos impopulares, mas de enorme prestígio junto ao empresariado. “A reforma trabalhista será muito relevante para o setor privado”, disse Roberto Setubal, presidente do Itaú, em seminário do banco na semana passada. “Haverá ganhos de produtividade, ainda mais se houver um presidente que dê continuidade [às reformas]”, completou o banqueiro.
O mercado já havia celebrado a criação do Teto de Gastos, aprovado no final do ano passado. Na sequência, veio a aprovação da terceirização no final de março, que autorizou a contratação de funcionários terceirizados inclusive para a atividade-fim, algo que era vetado até então. Agora, pretende emplacar na Câmara dos Deputados mais uma reforma, a Trabalhista. Para tanto, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), alinhado com o presidente Temer, insistiu num pedido de urgência para acelerar a aprovação. A votação do regime de urgência fez com que as discussões sobre as mudanças na legislação trabalhistas fossem encurtadas. Nesta terça-feira 25, a proposta deverá ser votada na comissão especial criada para tratar do tema. E, na quarta-feira, a previsão é que seja analisada pelo plenário da Câmara. Para ser aprovada, bastam 257 votos.
De qualquer maneira, a análise na Casa já é um termômetro para o que há por vir para a gestão Temer. Isso porque nos próximos meses Temer enfrentará seu principal desafio, a Reforma da Previdência, uma proposta de emenda constitucional (PEC) que, diferentemente de um projeto de lei, necessita de 308 votos para ser aprovada no Congresso e tem gerado infindáveis debates entre especialistas. No meio do caminho, entretanto, há uma greve geral agendada. Sindicatos e movimentos populares estão chamando gente para um protesto nesta sexta, 28, contra as reformas agendadas por Temer. Será mais um teste para o Governo, desta vez nas ruas.
Mudanças trabalhistas
O Governo argumenta que a CLT tem de ser atualizada por não conseguir atender a todos os setores da economia. Outra razão é que foram incorporados “penduricalhos” às leis, que geram interpretações divergentes e estimulam disputas judiciais. Os principais pontos tratados por essa reforma são: o fim do acordo coletivo para reajustes salariais e outros benefícios, como planos de carreiras; a mudança na jornada de trabalho de 8 horas diárias para até 12; uma possível suspensão do registro de ponto; a autorização para reduzir o horário de almoço dos servidores para no mínimo meia hora – hoje é de uma hora; entre outras.
Uma das entidades que mais têm defendido as mudanças nas regras trabalhistas é a Confederação Nacional da Indústria (CNI). “O mundo avançou, mas a regulamentação do trabalho ficou estagnada no tempo. Está arcaica. Modernizar a legislação trabalhista é imperativo”, afirmou o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, em artigo publicado no jornal O Globo.
Por outro lado, os críticos das mudanças dizem que a reforma selará a extinção da CLT, reduzirá os direitos dos trabalhadores e só está sendo proposta porque o país passa por um suposto “regime de exceção”. “A reforma proposta por um governo ilegítimo, que é levada adiante por um parlamento composto por políticos eleitos com dinheiro de propina e caixa dois – antidemocraticamente eleito, portanto – retira a centralidade que o trabalho tem na sociedade brasileira”, afirmou em um artigo o professor universitário e advogado Ricardo Nunes de Mendonça, representante do Instituto de Defesa da Classe Trabalhadora.
Leia o restante da matéria no site do El País clicando aqui.
- Publicado em Notícias
Os ataques ao direito e a Justiça do Trabalho no Brasil
Por Nasser Allan*
No Brasil, iniciativas estatais para impor limites à exploração dos trabalhadores tardaram a surgir. A produção estatal de leis trabalhistas ocorreu com maior desenvoltura a partir da década de 1930, época em que foi criada a Justiça do Trabalho.
Instituída, em 1939, a Justiça do Trabalho foi concebida para dirimir conflitos sociais, promovendo a pacificação nas relações de trabalho e a conciliação de interesses entre as classes sociais, em conformidade com a doutrina corporativista então em voga. Negava-se assim a luta de classes e propunha-se soluções jurisdicionais aos conflitos individuais e coletivos do trabalho.
Com o passar do tempo consolidou-se um discurso estatal de que o direito e a Justiça do Trabalho foram outorgados pelo Estado para proteger os trabalhadores. Trata-se de algo presente no senso comum da sociedade brasileira, repetido irrefletidamente à exaustão, porém, divorciado da realidade.
A despeito de desempenhar função fundamental no capitalismo, o direito do trabalho sempre foi combatido pelos capitalistas, sendo considerado como entrave ao crescimento econômico. Isso justificou as incontáveis tentativas de “reformas” na legislação, patrocinadas pelo patronato, com a intenção de retirar direitos dos trabalhadores.
Tramitam, atualmente, no Congresso Nacional 55 projetos propondo a supressão de algum direito dos trabalhadores. Dentre eles, há dois representando imenso risco às garantias asseguradas na legislação (são os que estabelecem a prevalência do negociado sobre o legislado e a ampla e irrestrita contratação de trabalhadores terceirizados) que, se aprovados, trarão retrocesso social com aumento de concentração de renda pelo patronato.
Outra forma de atuação da elite econômica junto ao Poder Legislativo pode ser percebida no corte orçamentário da Justiça do Trabalho. Na semana passada, o Tribunal Regional do Trabalho do Paraná anunciou que em razão da redução de seu orçamento para o ano de 2016 poderá fechar suas portas em outubro. Tribunais de outros estados também manifestaram ser impossível manter-se em funcionamento até o final do ano.
A redução nas despesas engendrada pelo Congresso Nacional concentrou-se principalmente em custeio, despesas essenciais para manutenção dos serviços prestados aos cidadãos que procuram a Justiça do Trabalho. Para ilustrar, em 2016, ao TRT/PR planejava-se destinar um pouco mais de R$ 68 milhões para gastos com custeio; contudo, este valor foi reduzido para R$ 49 milhões, ou seja, um corte de mais de R$ 19 milhões (28%).
Diferentemente do que se possa crer, os cortes orçamentários não resultam da mera intenção de adaptar-se ao ajuste fiscal do Governo Federal ou de retirar privilégios, que, diga-se, inexistentes. Afinal, outras vertentes do Poder Judiciário não foram tão afetadas pela minoração dos recursos quanto a Justiça do Trabalho.
Das palavras do Relator-geral do Orçamento de 2016, deputado Ricardo Barros, vislumbra-se a motivação da austeridade imposta a Justiça do Trabalho, pois, nos seus dizeres “as regras atuais estimulam a judicialização dos conflitos trabalhistas, na medida em que são extremamente condescendentes com o trabalhador”. Por isso, na sua visão, a redução imposta no orçamento seria uma “forma de estimular uma reflexão sobre a necessidade e urgência de tais mudanças”.
Resulta evidente o motivo pelo qual a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho interpretou o corte no orçamento como uma tentativa de controle sobre o conteúdo das decisões dos juízes, com vistas a favorecer o patronato. O deputado paranaense não dissimilou o discurso. Ao contrário, foi enfático ao afirmar que os juízes do trabalho devem ser mais rigorosos com os trabalhadores não os beneficiando em suas sentenças. Ele ocultou, no entanto, o fato de representar no Congresso Nacional os interesses de uma fração de classe da elite econômica, constituída pelos setores mais retrógrados da sociedade brasileira que jamais se resignaram com a legislação trabalhista, sendo contumazes violadores de direitos dos trabalhadores.
Essa medida parece associar-se aos projetos de lei, patrocinados pelas entidades sindicais patronais, em tramitação no Congresso Nacional prevendo a retirada de direitos dos trabalhadores. Afinal, recorde-se, por mais importante que sejam para a estabilidade e desenvolvimento do capitalismo, constitui-se desejo quase obsessivo do empresariado brasileiro, se não acabar, debilitar fortemente o direito e a Justiça do Trabalho a fim de remover qualquer constrangimento à exploração da mão de obra e à cumulação de capital. Por certo, isso também instigará a luta de classes ao despertar o hoje adormecido ímpeto insurgente dos trabalhadores.
Este momento histórico mostra-se vital à defesa intransigente dos direitos conquistados pelos trabalhadores como também da preservação da autonomia, independência e pleno funcionamento da Justiça do Trabalho no país.
*Nasser Ahmad Allan, doutor em direitos humanos e democracia pela UFPR e advogado do Instituto Declatra.
Artigo originalmente publicado no jornal Gazeta do Povo.
- Publicado em Notícias
Para depois do golpe: o ataque aos direitos dos trabalhadores
Por Nasser Ahmad Allan
Os debates sobre o golpe parlamentar contra a soberania popular e, consequentemente, contra o mandato da Presidente Dilma Rousseff, dominam o cenário nacional. E assim há de ser ante a iminente ameaça de ruptura institucional.
Denunciar o golpe, seus atores e interesses envolvidos, tem se evidenciado como importante linha de atuação de quem possui compromisso com o Estado de Direito e com a democracia. Associando-me a esta forma de resistir, pretendo expor algumas considerações sobre os efeitos causados por um possível governo Temer aos direitos dos trabalhadores.
Antes mesmo de Eduardo Cunha autorizar o prosseguimento do pedido de impedimento da presidente da República, o PMDB divulgou documento contendo as principais propostas de Michel Temer para enfrentar a crise política e econômica, destinando-se, entre outras coisas, segundo suas palavras, “a preservar a economia e tornar viável o seu desenvolvimento”. Neste programa (“Uma ponte para o futuro” foi o título escolhido), o vice-presidente propõe, além da reforma da previdência social, da diminuição de investimentos em educação, saúde e programas sociais do Governo Federal, a retirada de direitos dos trabalhadores.
Não há de ser outra a leitura da proposta elaborada por Temer no sentido de “na área trabalhista, permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos”. Simples, direto e, por que não dizer, cruel.
A expressão utilizada não poderia ser mais apropriada, pois, confere exatamente à medida daquilo que receberá a proteção do Estado, o “básico”. Por esse termo, compreendo salário, férias, décimo terceiro salário e, quem sabe, o FGTS. Extraio minha interpretação das inúmeras reivindicações por reformas trabalhistas apresentadas pelo patronato no curso da história quando defenderam a supressão de direitos. Mas, ela também resulta de o fato de Michel Temer não se preocupar em salvaguardar os direitos sociais previstos no art. 7º da Constituição Federal. Se assim o fosse, sua proposta ressalvaria as garantias constitucionais aos trabalhadores.
A pretensão de conferir autonomia privada absoluta à negociação coletiva, ou seja, conceder capacidade jurídica aos sindicatos para, por convenções ou acordos coletivos de trabalho, reduzir ou extinguir direitos previstos em lei, constitui-se em verdadeira obsessão do empresariado brasileiro.
Nos anos 1990, tramitou na Câmara dos Deputados um projeto de lei propondo modificar a redação do artigo 618 da CLT para nele constar a prevalência da norma coletiva sobre os direitos estabelecidos em lei, permitindo assim que os sindicatos abdicassem de conquistas previstas na legislação. Tal projeto somente foi definitivamente arquivado depois da primeira eleição de Lula, em 2002. Sopravam novos ventos.
A matéria retornou ao legislativo, no entanto, com o PL 4193/2012, de iniciativa do deputado Irajá Abreu (PSD/TO), tendo por proposta alterar o texto do artigo 611 da CLT possibilitando a sobreposição de convenções e acordos coletivos sobre os direitos garantidos em lei, mesmo em prejuízo dos trabalhadores.
O tema, portanto, é central (e recorrente) à pauta das principais entidades representativas do patronato no país. Sua inclusão no programa de Michel Temer notabiliza a tentativa, diga-se exitosa, de incitar a adesão da classe economicamente dominante ao golpe, então em gestação.
Os detentores dos meios de produção sempre perseguiram o ideário neoliberal de desregulamentação de direitos, com relações de trabalho pautadas na livre negociação entre as partes, estando, quando muito, os trabalhadores representados por seus sindicatos. Neste cenário a intervenção estatal é indesejada, pois, ao obrigar o cumprimento de determinados direitos à classe trabalhadora, o Estado impõe freios à exploração da mão de obra, constrangendo a cumulação capitalista.
Nossa elite econômica, sob o eufemismo da modernização da legislação trabalhista, pretende uma mudança de paradigma no direito do trabalho brasileiro. Esse ramo do direito desenvolveu-se como reação aos movimentos de resistência da classe trabalhadora. Resulta de processos históricos de correlação de forças entre capital e trabalho que precipitaram o intervencionismo do Estado com objetivo de pacificar as relações de produção.
A legislação trabalhista estabeleceu-se como patamar mínimo a partir do qual os sindicatos poderiam negociar outros direitos ou a majoração dos existentes. Disto decorre o caráter supletivo ou complementar das convenções e acordos coletivos, porque devem respeitar os pisos fixados pela lei.
A modificação proposta por Michel Temer subverterá a lógica sob a qual foi engendrado o direito do trabalho no Brasil. Mais do que isso. Se essa mudança for concretizada haverá de se falar em um novo direito, de cunho liberal, pautado no princípio da livre negociação e na liberdade de trabalho, o que para as elites brasileiras, historicamente, significam ausência de freios à exploração dos trabalhadores.
Em um contexto de retração econômica, aliada a decadente estrutura sindical brasileira, sempre a espera de uma reforma conferindo genuinamente liberdade e autonomia aos sindicatos, e com um direito de greve frequentemente tolhido pelo Judiciário quando exercido, permitir a redução e extinção de direitos previstos em lei pela via da negociação coletiva será uma tragédia.
No campo das relações concretas de trabalho essa proposta representará, à exceção a uma ou outra categoria de trabalhadores mais organizada e com maior capacidade de mobilização, a suspensão de praticamente todos os direitos previstos na CLT. Em perspectiva acadêmica significará o fim do direito do trabalho brasileiro tal qual conhecemos e estudamos.
A proposta de modificação apresentada por Michel Temer torna-se ainda mais perversa se combinada com as iniciativas legislativas de flexibilização ou extinção de direitos, patrocinadas pelo patronato brasileiro. Atualmente, tramitam no Congresso Nacional cinquenta e cinco projetos que, uma vez aprovados, significarão supressão de direitos dos trabalhadores. Destes, certamente o de maior potencial lesivo é o PLC 30/2015, aprovado na Câmara e submetido ao Senado, que permitirá terceirizar todas as atividades de uma empresa, induzindo a fragmentação ainda maior da representação dos trabalhadores e, consequentemente, a precarização das condições de trabalho. Na outra direção, potencializará lucros aos capitalistas.
Com o golpe de 1964, a ditadura militar-civil instaurada interveio diretamente nas negociações coletivas de trabalho, enfraquecendo a representação sindical dos trabalhadores, resultando, por infindáveis vinte e um anos, de um lado, arrocho salarial e, de outro, aos capitalistas, maior concentração de renda. Naquela época, os militares tomaram o poder político para garantir a grande burguesia sua supremacia nas relações de produção, sem sobressaltos, inconvenientes ou constrangimentos a maior cumulação de capital.
Hoje, cinquenta e dois anos depois, os militares estão na caserna. Mas, novamente, a elite econômica do país, por intermédio de seus representantes na classe política, objetiva ampliar seu domínio nas relações de produção, através da desregulamentação do direito do trabalho, com suspensão da eficácia das leis trabalhistas, especialmente da CLT. Com isso, serão afastados os limites à exploração da classe trabalhadora, propiciando maior concentração de riqueza e aumento da desigualdade social e econômica.
Não é difícil, portanto, compreender as razões do engajamento político e financeiro das entidades da classe patronal ao golpe. Por detrás do tecnicismo jurídico, das mentiras propagas pela imprensa, das justificativas econômicas ou do moralismo hipócrita com que a questão do impeachment é abordada, no cerne de tudo isso está a luta de classes. Esta não é a primeira e nem será a última tentativa de a classe economicamente dominante retirar do poder político, por via ilegítima, quem constrange a concretização plena de seus interesses.
É luta de classes! Cabe aos trabalhadores resistirem as investidas do capital contra o Estado de Direito e contra a democracia. Agindo assim também estarão defendendo seus interesses de classe.
Nasser Ahmad Allan é Doutor em direito pela UFPR e advogado do Instituto Declatra.
- Publicado em Notícias
Artigo: O negociado sobre o legislado
Por Valdete Souto Severo, juíza do Trabalho da 4ª Região
Um dos tantos reflexos da modernidade é justamente a centralidade do indivíduo. O homem passa a buscar as verdades em si mesmo. E como perde suas referências incontestáveis, pois não está mais atrelado à vontade de Deus e da natureza, precisa ser um sujeito autorreferente. Daí toda a construção teórica moderna acerca da autonomia como capacidade para negociação. Aliás, é esse conceito de autonomia, denunciado como falacioso por autores como Marx, Nietzsche ou Freud, que confere ao homem a liberdade para exercer sua vontade sobre o outro, sobre o mundo e sobre a natureza. É também ele que permite a mágica pela qual um ser humano consegue, pretensamente preservando sua autonomia, ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de um contrato. É o que ocorre na relação de emprego: quem trabalha é sujeito, porque contrata “livremente”, mas também é objeto, porque a troca se dá justamente entre remuneração e força de trabalho (que não se desgruda do trabalhador). Essa é a autonomia moderna: liberdade para vender tempo de vida e saúde (basta pensar nas hipóteses de trabalho insalubre); liberdade para assumir as consequências do próprio fracasso.
O que tudo isso tem a ver com a expressão que ganhou espaço no discurso trabalhista da década de 1990, no mesmo período em que se pretendeu a extinção da Justiça do Trabalho, e que retorna agora com vigor e dá título a esse breve ensaio?
O “negociado sobre o legislado” representa a tentativa neoliberal de eliminar a proteção das normas fundamentais trabalhistas. Esteve em alta no governo FHC, com a proposta de alteração do art. 618 da CLT, que acabou arquivado por pressão social. Agora, retorna à cena em um “enxerto” inserido na MP 680, que institui o Plano de Proteção ao Emprego. O artigo, incorporado ao projeto que pretende converter em lei essa famigerada MP, altera a redação do 611 da CLT, para acrescentar parágrafos que autorizam a prevalência de condições estabelecidas em normas coletivas, em detrimento dos direitos mínimos contidos na CLT. Trata-se de nova e idêntica tentativa de afastar a aplicação da CLT aos trabalhadores. Agora, porém, diante de um cenário político hostil e predatório, que não tem hesitado em aprovar retrocessos sociais.
O discurso de reforço à autonomia coletiva das vontades não é novo, nem necessariamente falso. Tem servido, porém, para desviar o foco e, concretamente, suprimir qualquer possibilidade de pressão do trabalho sobre o capital. A própria denominação incorporada ao vocabulário trabalhista, de “negociação” coletiva, conduz à ideia de troca recíproca, quando em realidade as normas coletivas são fruto da organização e da pressão dos trabalhadores por condições de trabalho melhores do que as que possuem. Trata-se de um fato social incorporado pelo Estado, que o precede e supera. Capital e trabalho não negociam, travam embates para fixar limites a essa troca objetivamente desigual. E nesse embate, o trabalho está em desvantagem, razão da necessidade de organização coletiva. Sem essa organização, dificilmente há melhoria real das condições de vida dos trabalhadores. Basta olhar a história. Daí porque é indiscutível a importância de valorizar e garantir condições reais de pressão aos sindicatos. Para isso, porém, não é necessário dar às normas coletivas força maior do que detém a legislação social. Ao contrário, ter a CLT, ao lado da Constituição e das normas internacionais de proteção ao trabalho, como parâmetro mínimo civilizatório, é a condição para que os sindicatos não sofram pressão inversa e acabem por chancelar a perda de direitos. Então, se o objetivo realmente é o de valorizar a autonomia coletiva, basta reconhecer eficácia ao inciso I do artigo 7º da Constituição, que garante proteção contra a despedida. Algo, aliás, já reconhecido em Convenções como a 87 e a 98 da OIT, em relação a todos aqueles que exercem atividade sindical e que tem sido sistematicamente desrespeitado no Brasil. Se o objetivo é valorizar a autonomia coletiva, basta reconhecer (de verdade) ultratividade às normas mais benéficas, incorporando-as aos contratos de trabalho. Mas é aí que a ideologia da autonomia moderna entra em ação. A ideia de que somos livres para negociar, especialmente quando representados por um sindicato, anestesia a realidade de que em um contexto capitalista essa liberdade, quando efetivamente exercida, enfrenta severas restrições.
A sedução do discurso da autonomia coletiva das vontades não resiste, pois, a qualquer exame concreto. Recentemente, os servidores públicos federais, detentores de garantia de emprego e devidamente representados pelo sindicato, foram compelidos a dar fim ao movimento paredista, após a notícia de que teriam seus salários cortados. Em Porto Alegre, trabalhadores militantes da CARRIS, foram despedidos sob alegação de falta grave após intensa atuação sindical em defesa da categoria. Pois bem, se mesmo a garantia contra a despedida não impede a pressão do capital sobre o trabalho, será mesmo coerente crer que a autonomia coletiva possa ser exercida em uma realidade ainda mais precária, pela ausência dessa garantia, como é a da grande maioria das categorias de trabalhadores brasileiros? Será mesmo razoável entender que colocar a norma coletiva acima dos direitos mínimos previstos na CLT poderá constituir, sob qualquer perspectiva, algo benéfico aos trabalhadores?
O que se pretende então, sob o discurso de fortalecer os sindicatos dando-lhes autonomia, é retirar dos trabalhadores os direitos mínimos que foram arduamente conquistados ao longo de mais de um século. E, com isso, retirar dos sindicatos os parâmetros de luta, submetendo-os a uma “negociação” sem limites com o capital.
É preciso perceber com clareza: nada na atuação dos entes coletivos se perde ou minimiza, em razão da proteção legal. Ao contrário, o parâmetro mínimo estabelecido na legislação trabalhista é o ponto de partida para qualquer espécie de “negociação”. A proposta, portanto, é de desmanche da legislação social. Nada de novo, em um quadro de franco e agressivo retrocesso, como o que estamos enfrentando neste ano de 2015.
Hoje é um dia de luto para o direito do trabalho. O projeto que pretende a instauração do “negociado sobre o legislado” foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Segue agora para o plenário. É preciso mobilização, sobretudo das entidades de classe que representam os trabalhadores brasileiros, para que o projeto seja definitivamente rejeitado. Estamos, uma vez mais, a um passo da institucionalização da barbárie.
- Publicado em Notícias
Artigo – PL 8294: inimigos na trincheira
Por Valdete Souto Severo, juíza do Trabalho da 4ª Região
Estamos preocupados, e temos muitas razões para isso, com a avalanche representada pelo PLC 30 de 2015, cuja pretensão altamente destrutiva, compromete os pilares do direito do trabalho. Regulamentar a terceirização implica alterar radicalmente a base jurídica da relação capital x trabalho, permitindo que na realidade da vida ela continue exatamente igual: uma troca entre dois lados, marcada pela desigualdade e pelo assujeitamento.
Existe, porém, uma marcha silenciosa que tem passado desapercebida e que complementa essa ânsia pelo desmanche dos direitos trabalhistas. Um desses movimentos de destruição que precisam da nossa atenção, é o que se pretende perpetrar com o PL 8294 de 2014, que propõe alteração no artigo 444 da CLT. Esse artigo, ao estabelecer a impossibilidade de pactuação de regras contrárias aos princípios e normas de proteção, constitui cláusula geral de indenidade ao trabalhador. Cláusula que, é bom recordar, sequer é respeitada em boa parte das relações de trabalho. Na medida em que não há garantia contra a despedida no Brasil, é bem difícil, para não dizer completamente fantasioso, impor ao empregador a observância efetiva dessa cláusula geral de proteção. Ainda assim, tal dispositivo é de extrema importância na lógica da construção de um estado social democrático e inclusivo, como pretende a Constituição de 1988. No mínimo, garante ao empregado a possibilidade de reconhecer, por meio da Justiça do Trabalho, a nulidade de ajustes que retirem ou mitiguem direitos trabalhistas. Portanto, é essencial para que impeçamos a instituição da barbárie, o retorno à lógica da oferta e da procura, pela qual tudo é passível de ser pactuado, dependendo exclusivamente da capacidade/necessidade de negociação dos sujeitos.
A norma do artigo 444 da CLT representa o que poderíamos chamar de parte integrante do patamar mínimo civilizatório. Daí a necessidade de combatermos esse projeto de lei, que vem tramitando apressadamente no Congresso Nacional.
O projeto pretende a inclusão de um parágrafo único no artigo 444 da CLT, com a seguinte disposição: “Os limites para livre estipulação do contrato de trabalho, estabelecidos no caput, não se aplicam quando: I – o empregado for portador de diploma de nível superior e perceber salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social; II – o empregado, independentemente do nível de escolaridade, perceber salário mensal igual ou superior a três vezes o limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social”.
A pretensão desse terrível projeto de lei é eliminar a proteção ao “contrato”, sob o argumento de que os “profissionais mais graduados ou com salários maiores” “são aptos o suficiente para decidir por si mesmos” e, por isso, não precisam de proteção. Note-se que a maior graduação consiste em formação acadêmica, atingindo praticamente todos os profissionais em áreas que exijam curso superior, como os profissionais da educação. A noção de que esses “altos empregados” devem ter “liberdade de estipular suas próprias condições contratuais de trabalho” é absurda, pois a dependência desses profissionais e, por consequência, as possibilidades de renúncia de direitos (irrenunciáveis) em face da necessidade de manter o posto de trabalho é mais forte, quanto maior for a remuneração percebida e o grau de escolaridade.
Em artigo sobre o tema, Souto Maior refere, citando a definição de um dicionário sobre os altos empregados, que esses profissionais “estão sujeitos a jornadas de trabalho extremamente elevadas, interferindo, negativamente em sua vida privada”, bem como trabalham sob “constante ameaça do desemprego” e por isso se sentem forçados a “constante preparação e qualificação, pois que o desemprego desses trabalhadores representa muito mais que uma desocupação temporária, representa interrupção de uma trajetória de carreira, vista como um plano de vida, implicando crise de identidade, humilhação, sentimento de culpa e deslocamento social. Em suma, a sua subordinação ao processo produtivo é intensa, corroendo sua saúde e desagregando sua família” (http://www.amdjus.com.br/doutrina/trabalhista/268.htm).
Essa é uma realidade que todos conhecemos.
O argumento utilizado para subtrair desses trabalhadores a proteção do artigo 444 não é diferente da lógica hegeliana de que o homem pode ser proprietário de si mesmo e, desse modo, expressar sua autonomia através da venda de sua força física ou intelectual. Está também na compreensão clássica de que o contrato de trabalho, tal como qualquer outro contrato de compra e venda, é manifestação de vontade livre.
A história das relações de trabalho, porém, insistentemente nos mostra o engodo que se esconde nessas afirmações tão antigas quanto distanciadas da realidade. Não há liberdade para quem precisa trabalhar por seu sustento, e a regra geral, inclusive para os empregados bem remunerados e graduados, é exatamente essa. A alegação de que precisamos deixar de “tratar esses trabalhadores como se não soubessem escolher, por exemplo, quanto tempo levarão para almoçar, ou como suas férias podem ser divididas, ou qual é o melhor mês para receber o décimo terceiro salário” revela o verdadeiro intuito do projeto: a flexibilização ou até mesmo a supressão de direitos fundamentais. A liberdade contratual que se pretende outorgar a esses trabalhadores nada mais é do que um salvo-conduto para o ajuste de normas contrárias ao seu interesse, chanceladas em razão da necessidade de obter/manter o posto de trabalho.
Note-se que a possibilidade de exercer autonomia, melhorando sua condição de trabalho, já é outorgada pela legislação trabalhista, que estabelece parâmetros mínimos para esse “contrato”. Logo, é completamente dissociada da verdade, a afirmação de que os empregados são tratados como se precisassem “sempre de terceiros, seja Estado ou sindicato, para cuidar deles”. Trata-se de afirmação perversa, que consta num dos votos em defesa do projeto antes mencionado. Os trabalhadores têm e sempre tiveram a possibilidade de cuidar de si mesmos, o que eles não têm é garantia contra a perda súbita de sua fonte de subsistência ou mesmo contra a pressão de quem oferece trabalho. O que eles não tem é a possibilidade real de “negociar” num ambiente em que pactuam a troca de tempo de vida por remuneração. E o que essa lei pretende não é outorgar-lhes maior autonomia para que “negociem” em melhores condições, mas permitir a imposição de cláusulas lesivas, referidas inclusive na exposição de motivos, como o fracionamento ou supressão do direito às férias ou do repouso para descanso e alimentação.
Outra perversidade que se extrai desse discurso que propõe a alteração do artigo 444 da CLT é a conclusão – implícita na proposta -, de que os trabalhadores mal remunerados, ou não graduados, devem continuar a ser tratados como pessoas que não sabem cuidar de si mesmas. Essa distorção do discurso da proteção, que a desqualifica como uma tutela de incapaz, gera de imediato dois efeitos terríveis. De um lado, autoriza que os direitos fundamentais comecem a ser questionados, também em relação aos demais empregados, permitindo o retorno da malsinada discussão entre negociado e legislado. De outro, pressupõe a existência de duas classes de seres humanos. Alguns capazes de exercer autonomia (essa falsa autonomia do discurso liberal), outros não.
Resgata, ainda, o discurso surrado e insistentemente negado pela realidade das relações do trabalho, de que se os trabalhadores “sabem o que querem”, não precisam da justiça do trabalho nem do sindicato, para conquistarem condições adequadas e boas de trabalho. Com isso, também desprestigia a função dos sindicatos e, ao menos nesse tópico, é de uma franqueza louvável: pretende afastar tanto a proteção legal quanto a sindical, conquistada através da luta e do reconhecimento da força que a pressão coletiva tem condições de exercer no mundo das relações de trabalho.
Outro grave equívoco, por certo intencional, desse projeto de lei, é confundir subordinação com dependência econômica ou técnica. A doutrina trabalhista já há tempo rejeitou esse atrelamento. A proteção que incide sobre as relações de trabalho não está ligada às condições pessoais de quem trabalha, mas à circunstância de que nela está implicada uma troca desigual. O fato objetivo de que na relação de trabalho ocorre a troca de tempo de vida por remuneração é o elemento, historicamente reconhecido, que está no princípio da construção de normas tipicamente trabalhistas.
O PL 8294 de 2014 é, portanto, mais uma arma dos inimigos do direito do trabalho, que seguem mobilizados em trincheiras tão coesas quanto extremistas, com o claro objetivo de extingui-lo. Os fundamentos e a literalidade da proposta contida nesse PL implicam a adoção de um discurso no qual o direito do trabalho é dispensável. Então, o que nele se esconde é a reedição da vontade liberal de extinção da justiça do trabalho e, consequentemente, anulação da força de tensão, contenção e avanço dos direitos fundamentais trabalhistas.
Se os inimigos estão organizados em seu propósito de ataque e desconstrução do direito do trabalho, a resposta precisa ser ágil e efetiva. Esse projeto de lei está atualmente na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público. As entidades sindicais e os demais representantes de trabalhadores precisam estar atentos e intervir no processo legislativo para impedir que seja aprovado, sob pena de grave retrocesso.
- Publicado em Notícias
O Dano Existencial Decorrente da Delinquência Patronal
Cada vez mais o capital, personificado na figura do poder patronal, exerce um papel que até então era apenas outorgado ao Estado, qual seja, o “sequestro do tempo” dos indivíduos, dificultando e até mesmo impedindo que os trabalhadores de determinada área, ou de determinada empresa, organizem-se no sentido de reivindicarem melhores condições de trabalho.
Leia o artigo na íntegra aqui.
Opinião: As demissões e o HSBC
De alguma forma, todos já tivemos notícias de redução drástica de número de empregados, geralmente em época de retração econômica.
Não me contradigo. Sempre fui favorável à solução de conflitos mediante negociação entre as partes, porém empresas notadamente lucrativas não podem simplesmente ser desativadas na iminência da redução ou cessação de lucros. Essa conta deve ser feita ao longo dos anos, computando-se aí o período em que se beneficiou de um mercado aquecido, quando o restante do mundo amargava uma derrota econômica, além dos incentivos governamentais em todos os níveis.
É o exemplo do que está ocorrendo agora com o HSBC, com as particularidades do sistema bancário. Não indo à falência, a marca será transferida juntamente com seus ativos e clientes sem maiores problemas, sempre na expectativa das promessas de melhoria no atendimento.
Quem realmente se lembra da venda do Bamerindus ao HSBC? Arrisco-me a dizer que apenas seus funcionários e o entorno dos prédios administrativos. E quem lembra dos absurdos memorandos da nova diretoria? Recomendavam que “os funcionários devem manter a boa higiene a asseio com seu corpo, evitando odores de transpiração ou outra situação desagradável”, e ainda que tomassem banho, escovassem os dentes e cuidassem da pele e unhas, segundo a Folha de S.Paulo de 10 de junho de 1997 e a revista Exame de 8 de outubro de 2003.
As contas foram assumidas, os clientes não perderam dinheiro e a vida continuou. Em um ano foram fechadas aproximadamente 100 agências no Brasil.
O que aconteceu com o Bamerindus não tardou a acontecer com outro banco de origem paranaense: o Banestado, transferido ao Itaú. Muita gritaria, indignação, mas resistência, mesmo, apenas dos bancários.
A paspalhice não pode ser repetida.
As mesmas condições são vislumbradas: transferências de ativos, de clientes e corte drástico no número de trabalhadores. Entretanto, desta vez há agravantes. Os dois bancos que apresentaram as propostas vinculantes, assim chamados os valores ofertados, são geridos a partir de outro estado.
A diferença é significativa. Apenas nas cinco sedes administrativas são mais 5 mil empregos diretos. Acresçam-se a estes todos os terceirizados (limpeza, vigilância etc.), e novamente o entorno. Claro, o banco não fez qualquer estudo de impacto, que nada lhe interessa. Tanto faz. Mas, pelos cálculos do economista Cid Cordeiro, cada emprego direto corresponde a três indiretos, incluindo aí toda a cercania dos centros administrativos e das grandes agências.
Já não acho que a direção nacional do HSBC tenha muito a dizer. Nada disse antes e desconfio que pouco saiba. Consta que ficará à margem de toda a decisão de venda. Entretanto, a notícia por ela trazida a público, de que não haverá demissões, é esperançosa; um acordo coletivo entre o HSBC e os sindicatos de bancários, ratificado no contrato de compra e venda, deixaria todos mais tranquilos de que a garantia não é “para inglês ver”.
Desta vez, outros atores não se mostram indiferentes. Falo de todo o Legislativo paranaense, da administração municipal, da Associação Comercial e tantos quantos queiram se associar a esta luta.
Qual a garantia de sucesso que se tem? Nenhuma, claro. Mas aprendamos com o movimento social: a mobilização pode, sim, dar resultados. É a minha vivência, é no que acredito.
Mirian Gonçalves é vice-prefeita de Curitiba e secretária municipal do Trabalho e Emprego.
Artigo originalmente publicado na edição de 12 de julho do jornal Gazeta do Povo.
- Publicado em Notícias
ADI 1923: legitimação e ampliação da terceirização no setor público por Jorge Souto Maior
Por Jorge Luiz Souto Maior(*)
No último dia 15 de abril, algumas organizações estudantis da Universidade de São Paulo, antes de se encaminharem para a manifestação no Largo da Batata, realizaram um ato público contra o PL 4.330/04 no rol de entrada da Faculdade de Direito (USP), tendo sido me concedida a oportunidade da fala. Na ocasião pedi para ficasse ali consignado um “registro histórico”, no sentido da advertência de que, depois da grande difusão dada na mídia de que teria havido um recuo do Congresso sobre o teor do PL 4.330/04, levando, inclusive, os movimentos sociais e sindicais a considerarem que já tinham obtido uma grande vitória com a aprovação da Emenda supressiva, encaminhada pelo PSDB, com apoio do PT, que retirou a menção da aplicação do PL “às empresas públicas, às sociedades de economia mistas e suas subsidiárias e controladas, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios” e da retirada da pauta, pelo PR, da Emenda 72, que visava explicitar a aplicação do PL à administração pública direta, deveríamos ficar muito atentos, pois aquela situação dava a entender que algo estava sendo gestado no âmbito da terceirização no setor público.
O destaque à notícia da aprovação da Emenda supressiva parecia-me uma estratégia para retirar a discussão da terceirização no setor público do âmbito do calor das manifestações contrárias ao PL, o que permitiria uma facilidade maior para passar o PL, ao mesmo tempo em que conduzia, sem alarde, a questão da terceirização no setor público para outra esfera de regulação.
O anúncio midiático conferia, também, o argumento para que se dissesse que negociações foram feitas sobre o conteúdo do PL e que com mais um ou outro “ajuste”, como, por exemplo, a fixação da responsabilidade solidária do tomador de serviços no que tange a certos direitos dos terceirizados (talvez, “verbas rescisórias”, em condições inaplicáveis, de todo modo), se chegaria a um grande acordo no qual o segmento empresarial veria atingido o seu objetivo e os políticos preservados os seus interesses eleitorais, dizendo que ouviram a voz das ruas, e que todos nós, que estávamos ali saindo para a manifestação poderíamos estar sendo feitos de “massa de manobra” para esse ajuste, que teria como efeito gravíssimo a aprovação menos ampla do PL, mas que, no fundo, legitimaria a terceirização e todas as suas perversidades que estão aí há décadas solapando a vida de milhões de trabalhadoras e trabalhadores terceirizados, sem enfrentar, ainda, o problema concreto da terceirização no setor público.
Em texto publicado em janeiro deste ano[1], tentei chamar atenção para o fato de que o plano estratégico de atuação imposto ao Judiciário, em conformidade com as diretrizes do Banco Mundial, seguindo o padrão teórico consignado no conhecido Documento n. 319, elaborado na década de 90, teria o objetivo de moldar os juízes para reproduzirem a (ir)racionalidade de mercado e assim fazer com que as reformas neoliberais, de retirada de direitos, não se submetessem ao calor das resistências populares, advindo, isto sim, da própria atuação jurisdicional, sendo que o maior condutor dessa “obra”, já que a Justiça do Trabalho, institucionalmente, se “recusou” a fazê-lo, submetida que está aos princípios do Direito do Trabalho, que muitos teóricos, durante muito tempo, tentaram destruir mas não conseguiram, poderia ser o Supremo Tribunal Federal nos julgamentos das ADIs e na utilização do mecanismo da repercussão geral, ainda mais depois que, estrategicamente, fizeram-se ataques públicos ao Supremo, acusando-o de estar se curvando ao “bolivarianismo”.
No texto, fazia menção à derrota experimentada pela classe trabalhadora no julgamento, havido em 13/11/14, tratando da prescrição do FGTS, no recurso de um processo (ARE 709212), ao qual se deu, sem qualquer explicação razoável, repercussão geral. Destacava o risco que os trabalhadores corriam em julgamentos futuros, sobretudo por conta dos argumentos utilizados naquele julgamento, que incorporaram os argumentos abstratos e retóricos da (ir)racionalidade econômica, conforme expresso no voto do Ministro Fux: “Novos tempos, novos direitos”[2].
Pois não é que naquele mesmo dia, do evento na Faculdade e da manifestação popular contra o PL 4.330/04, dia 15 de abril de 2015, estava sendo julgada no Supremo Tribunal Federal a ADI 1923, que trata exatamente da possibilidade de transpasse pelo Administrador de serviços públicos ao setor privado…
A ação, proposta em 1º./12/98, estava paralisada desde 21/10/13, quando o Ministro Marco Aurélio pediu vista. Com a devolução, em 10/02/15, o processo foi posto imediatamente em pauta e julgado, sem alarde, no dia 15/04/15, impedindo, assim, qualquer tipo de manifestação pública a respeito, ainda mais porque o voto condutor do Acórdão, proferido pelo Min. Fux, no sentido da constitucionalidade da lei que autoriza os convênios com as Organizações Sociais, conforme abaixo explicado, já era conhecido, vez que proferido em 19/05/11.
Oportuno o registro de que as partes do processo, que certamente tiveram ciência prévia de que o feito estava em pauta para julgamento, eram, dentre outras, o PT, o PDT, a Presidência da República e o Congresso Nacional, que, portanto, não demonstraram possuir o menor interesse em divulgar o advento do julgamento. Isso reforça a suposição de que de fato havia – e ainda há – um grande ajuste de interesses para a ampliação da terceirização no setor público, que se pretende seja implementado sem qualquer debate com a opinião pública a respeito.
Aliás, do ponto de vista da posição do Supremo frente aos interesses da classe trabalhadora, é interessante notar que o julgamento da ADI 1625, que trata da inconstitucionalidade da denúncia, feita pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, da Convenção 158, da OIT, que inibe a dispensa arbitrária de empregados, notadamente as dispensas coletivas, proposta em proposta em 19/06/97, até hoje não foi concluído, embora já tenha votos expressos pela inconstitucionalidade. Ou seja, não se verificou a mesma eficiência que se viu na ADI 1923 para julgar a ADI 1625, ainda mais porque, no mérito, é bastante difícil afastar a inconstitucionalidade da denúncia. De todo modo, há que se estar bastante atento, pois segundo informação constante do site do SFT, o processo da ADI 1626 foi devolvido a julgamento, em 10/04/15.
Fato é que as pessoas e entidades em geral, que estão nas ruas lutando contra a terceirização, ainda não se deram conta do tamanho do estrago provocado pela decisão da ADI 1923.
Resumidamente, conferindo uma interpretação conforme a Constituição da Lei n. 9.637/98, seguindo a redação que lhe fora dada pela Lei n. 9.648/98, ambas editadas no governo FHC, para implementação da ideia neoliberal de Estado mínimo, incorporada na compreensão econômica de Bresser Pereira (desde a criação do MARE, em 1995), o que o Supremo disse, agora, em 2015, é que a atuação do Estado na saúde, na educação, na cultura, no desporto e lazer, na ciência e tecnologia e no meio ambiente pode se realizar mediante uma gestão compartilhada com o setor privado, por intermédio da formalização de “instrumentos de colaboração público/privada”, pelos quais se reserva a participação do Estado como entidade de “fomento”, não apenas com transferência de recursos financeiros, mas também pela cessão de bens públicos e até de servidores públicos, sendo que esses instrumentos, que são, de fato e de direito, convênios, serão feitos com ONGs, alçadas ao “status” (“título jurídico”) de Organização Social por meio de deliberação do próprio ente público.
Nesse aspecto, aliás, a preocupação do voto vencedor no Supremo foi muito mais com o interesse das ONGs do que com o interesse público, ao explicitar que: “É de se ter por vedada, assim, qualquer forma de arbitrariedade, de modo que o indeferimento do requerimento de qualificação, além de pautado pela publicidade, transparência e motivação, deve observar critérios objetivos fixados em ato regulamentar expedido em obediência ao art. 20 da Lei nº 9.637/98, concretizando de forma homogênea as diretrizes contidas nos inc. I a III do dispositivo.
Ora, trata-se de critério objetivo para impedir a arbitrariedade na entrega do “título”, enquanto que o problema concreto, na órbita do interesse público, não é este e sim o da escolha da administração para formalizar o convênio, sendo que neste aspecto o julgamento estabeleceu que NÃO HÁ LICITAÇÃO para a contratação, admitindo, pois, a respeito, a atuação discriminatória do administrador, ainda que sob a retórica de que a contratação deva obedecer a “um procedimento público impessoal e pautado por critérios objetivos, por força da incidência direta dos princípios constitucionais da impessoalidade, da publicidade e da eficiência na Administração Pública (CF, art. 37, caput)”.
A decisão do Supremo, reproduzindo o espírito da lei em julgamento, prevê, ainda, a possibilidade de que as OSs formalizem, elas próprias, contratos com terceiros para a execução dos serviços, sem licitação, e, pior, que possa contratar trabalhadores sem concurso público, negando-lhe, por conseqüência, as garantias jurídicas dos estatutários. Prevê, ainda, que servidores estatutários prestem serviços às OSs e recebam destas uma remuneração fora dos padrões da “legalidade”.
Importantíssimo, ademais, destacar alguns dos argumentos utilizados no voto vencedor, do Min. Fux, que dão bem o tom neoliberal da decisão: “A atuação da Corte Constitucional não pode traduzir forma de engessamento e de cristalização de um determinado modelo pré-concebido de Estado, impedindo que, nos limites constitucionalmente assegurados, as maiorias políticas prevalecentes no jogo democrático pluralista possam pôr em prática seus projetos de governo, moldando o perfil e o instrumental do poder público conforme a vontade coletiva”.
O resultado dessa (ir)racionalidade neoliberal foi fazer letra morta da Constituição, pois quando a Constituição preconiza que os serviços na saúde (CF, art. 199, caput), na educação (CF, art. 209, caput), na cultura (CF, art. 215), no desporto e lazer (CF, art. 217), na ciência e tecnologia (CF, art. 218) e no meio ambiente (CF, art. 225) são serviços públicos e que “são deveres do Estado e da Sociedade”, estando “livres à iniciativa privada”, o que pretendeu foi deixar claro que as entidades privadas que se ativarem nesses setores não poderão visar apenas o lucro, estando obrigadas a respeitarem as finalidades próprias da prestação de um serviço público, buscando, em primeiro plano, a satisfação dos interesses da sociedade, cumprindo ao Estado, isto sim, a obrigação de impedir a mera mercantilização desses serviços ao mesmo tempo em que lhe compete programar e efetivar políticas públicas para a execução desses serviços e não simplesmente transferir sua responsabilidade para o setor privado, entregando a este dinheiro e bens públicos, ainda mais sem licitação, de modo, inclusive, a afastar a garantia constitucional do acesso democrático ao serviço público pela via do concurso, tudo em nome de uma suposta eficiência, que estaria garantida pelo controle do resultado, conforme, aliás, está sugerido no voto vencedor: “A finalidade de fomento, in casu, é posta em prática pela cessão de recursos, bens e pessoal da Administração Pública para as entidades privadas, após a celebração de contrato de gestão, o que viabilizará o direcionamento, pelo Poder Público, da atuação do particular em consonância com o interesse público, através da inserção de metas e de resultados a serem alcançados, sem que isso configure qualquer forma de renúncia aos deveres constitucionais de atuação.”
Ora, como bem destacou o Min. Marco Aurélio, em seu voto que restou vencido (acompanhado que foi apenas pela Min. Rosa Weber):
“A modelagem estabelecida pelo Texto Constitucional para a execução de serviços públicos sociais, como saúde, ensino, pesquisa, cultura e preservação do meio ambiente, não prescinde de atuação direta do Estado, de maneira que são incompatíveis com a Carta da República leis e programas de governo que emprestem ao Estado papel meramente indutor nessas áreas, consideradas de grande relevância social pelo constituinte.
A extinção sistemática de órgãos e entidades públicos que prestam serviços públicos de realce social, com a absorção da respectiva estrutura pela iniciativa privada – característica central do chamado ‘Programa Nacional de Publicização’, de acordo com o artigo 20 da Lei nº 9.637/98 –, configura privatização que ultrapassa as fronteiras permitidas pela Carta de 1988.
O Estado não pode simplesmente se eximir da execução direta de atividades relacionadas à saúde, educação, pesquisa, cultura, proteção e defesa do meio ambiente por meio da celebração de ‘parcerias’ com o setor privado.”
Além disso, mesmo que não houvesse uma grave inversão axiológica das normas constitucionais, não se pode, razoavelmente, prever uma melhoria da prestação desses serviços com a sua “privatização”, vez que nesse modo de execução tendem a ser mercantilizados e submetidos a lógicas meramente econômicas, voltadas ao lucro, sem falar, é claro, da maior facilitação de desvios indevidos do erário e da maior promiscuidade de interesses entre o público e o privado inclusive com objetivos eleitorais[3], cumprindo lembrar que o permissivo dos convênios vale para todos os municípios e estados do país, bem como para o governo federal, evidentemente.
Conforme observa com bastante propriedade Gustavo Alexandre Magalhães[4]:
“…após alguns anos de experiência no desenvolvimento do terceiro setor, a opinião pública observa a transferência de quantias vultosas para entidades não governamentais ligadas a partidos políticos e pessoas com grande influência junto às autoridades públicas, ou mesmo para desviar dinheiro público em benefício de interesses exclusivamente privados.”
A lógica privatista do Estado, que permite uma enorme promiscuidade com o setor privado, no entanto, foi acatada pelo Supremo, segundo explicitado no voto: “Na essência, preside a execução deste programa de ação institucional a lógica, que prevaleceu no jogo democrático, de que a atuação privada pode ser mais eficiente do que a pública em determinados domínios, dada a agilidade e a flexibilidade que marcam o regime de direito privado.” – grifou-se
Aliás, na ânsia de afirmar a (ir)racionalidade neoliberal, o voto do relator extrapola todos os limites jurídicos e simplesmente desconsidera a existência do aparado jurídico trabalhista, legal, constitucional e historicamente concebido, para sugerir, sem qualquer base teórica e com certa dose de irresponsabilidade, que “Os empregados das Organizações Sociais não são servidores públicos, mas sim empregados privados, por isso que sua remuneração não deve ter base em lei (CF, art. 37, X), mas nos contratos de trabalho firmados consensualmente”.
Ora, nas relações de emprego, mesmo privadas, a base remuneratória é legal e constitucionalmente fixada e não consensualmente estabelecida, a não ser no aspecto da superação, favorável ao trabalhador, do parâmetro legal.
Em suma, mesmo tentando conferir um verniz de respeito ao interesse público, mediante a permissão de “percentual de representantes do poder público no Conselho de Administração das organizações sociais” e a previsão de que: “(i) o procedimento de qualificação seja conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e de acordo com parâmetros fixados em abstrato segundo o que prega o art. 20 da Lei nº 9.637/98; (ii) a celebração do contrato de gestão seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iii) as hipóteses de dispensa de licitação para contratações (Lei nº 8.666/93, art. 24, XXIV) e outorga de permissão de uso de bem público (Lei nº 9.637/98, art. 12, §3º) sejam conduzidas de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iv) os contratos a serem celebrados pela Organização Social com terceiros, com recursos públicos, sejam conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; (v) a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; e (vi) para afastar qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de verbas públicas”, o que resulta, em concreto, do julgamento é que os governos poderão conferir um título jurídico de Organização Social a quem atenda, por meio de requisitos fixados em regimentos internos, e poderá, também, firmar convênios com a Organização Social que quiserem, transferindo-lhes dinheiro e bens públicos, além de servidores públicos, para administrarem serviços públicos em diversas áreas, sendo que essas organizações, ainda que controladas pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas, farão suas gestões sob a esfera da ordem jurídica de direito privado, inclusive e principalmente, no que se refere à contratação de trabalhadores, atingindo a execução de serviços que se integram ao conceito de atividade-fim do serviço público, com relação aos quais a mera terceirização (direta) não pode atingir.
Pelo artifício jurídico legitimado pela decisão do Supremo permitiu-se, enfim, a terceirização da atividade-fim no setor público, mediante a “terceirização” da própria administração, indo bem além (e sem limites) das hipóteses já previstas no art. 175 da Constituição (concessão e permissão de serviços públicos). Assim, um ente público poderá, por exemplo, transferir para uma OS, na forma acima narrada, uma atividade escolar ou de saúde. A organização Social responsável, recebendo dinheiro público e bens públicos, poderá prestar esses serviços por intermédio de professores e médicos contratados sem concurso público, sendo que a estes não se garantirá, por consequência, a estabilidade no emprego, que é atinente aos servidores, dentre outros direitos específicos.
Cumpre verificar que se estamos falando de serviços públicos, prestados no contexto da administração pública, ainda que por meio das OSs, estes não poderão ser cobrados da população e, por conseqüência, o lucro das organizações sociais – e o benefício dos governos – só se concretizará com a precarização das condições de trabalho desses profissionais, estando a reação coletiva destes extremamente dificultada pela perda da representação sindical e mais ainda se, em complemento, vier a ser aprovada a PL 4.330/04, vez que isto permitiria às OSs terceirizarem os serviços, valendo a observação de que se tudo isso deteriora a condição de trabalho dos professores e médicos, interferindo na própria liberdade didática ou clínica, que dirá, então, dos trabalhadores na limpeza e vigilância.
A sensação que fica é que todos que lutam contra a terceirização foram induzidos a um grande erro, envolvidos em um “jogo de cena” de muitos atores que serviu, propositalmente, para impedir a formulação de uma compreensão e, consequentemente, à organização de uma resistência popular a respeito dos propósitos privatizantes e precarizantes inseridos no objeto do julgamento da ADI 1923.
A luta contra o PL 4.330/04 precisa continuar, por certo, mas há de se reconhecer que a desarticulação e um envolvimento mais consistente contra a terceirização em si, em todos os níveis, já deixaram essa grande baixa, que foi o julgamento da ADI 1923. Para que se vislumbre uma reversão da situação ou se evitem danos maiores, é preciso que essa questão seja inserida nas reações de todas as pessoas e entidades que se ponham em defesa da ordem constitucional e dos direitos sociais. Sobretudo precisam tomar ciência da situação aqueles que serão diretamente atingidos por ela, quais sejam, os servidores públicos e os consumidores desses serviços
Um dos grandes problemas da terceirização, que é o da sua inserção na administração pública, que afronta a Constituição e que favorece à corrupção e ao desvio de verba pública, sem perder, por certo, a sua característica básica que é a precarização, está correndo, de forma livre, ao largo das mobilizações, legitimando-se e até ampliando-se.
Certo que se esses dispositivos de lei foram declarados constitucionais, também podem ser revogados por lei posterior. É certo também que essa lei específica, para ter vida concreta, precisa da efetivação de convênios e estes podem vir a existir, ou não. Mas, em concreto, é essencial que este tema seja inserido, com urgência, na pauta de discussões em torno do PL 4.330/04, para que se tenha um alcance real da problemática que envolve a terceirização e para que se possa implementar uma resistência consistente à precarização do trabalho e à destruição plena do projeto constitucional de Estado Social.
São Paulo, 22 de abril de 2015.
(*) Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.
[1]. – http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI213401,91041-Velhas+e+novas+ameacas+do+neoliberalismo+aos+direitos+trabalhistas [2]. Como consignado no texto: “Para negar a pecha de ‘bolivarianismo’ ou de ‘populismo judicial’, a atuação ‘ponderada’ e ‘razoável’ do STF, envolta em artificialismos jurídicos sem explicitação do contexto histórico e político em que as questões trabalhistas se inserem e, sobretudo, sem respeitar as bases constitucionais do Direito Social, pode se voltar contra os direitos sociais e, em especial, contra os direitos trabalhistas e previdenciários.Sem a formulação de uma compreensão do contexto histórico da realidade da classe trabalhadora no Brasil, o risco do advento de vários retrocessos sociais é bastante grande, ainda mais se lembrarmos que, com todo este cenário construído ao longo das últimas duas décadas, o Supremo está prestes a julgar questões de alta relevância para a classe trabalhadora, como o alcance da terceirização (ARE 713211), valendo lembrar que o julgamento em torno da inconstitucionalidade da denúncia da Convenção 158, da OIT, ainda não foi concluído (ADI 1625) e até mesmo importantes conquistas recentes da classe trabalhadora, instituídas no TST e no próprio Supremo, no que se referem às dispensas coletivas e ao direito de greve, também estão submetidas a recursos com repercussão geral (ARE 647561 e AI 853275/RJ, respectivamente) ou a decisão final em Ação Direita de Inconstitucionalidade, como no caso das comissões de conciliação prévia, com relação às quais uma suposta submissão obrigatória foi afastada pelo Supremo por decisões cautelares, em maio de 2009 (ADI 2139 e ADI 2160).”
[3]. “Parlamentares incluem no Orçamento de 2010 R$ 629 milhões, que serão destinados às organizações não governamentais. Valor é 40% maior do que o previsto para este ano”. PARLAMENTARES incluem R$ 630 milhões a ONGs no orçamento de 2010. Jornal Correio Brasiliense (on line). Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2009/12/20/politica,i=162065/PARLAMENTARES+INCL UEM+R+630+MILHOES+A+ONGS+NO+ORCAMENTO+DE+2010.shtml. Acesso em:20 dez. 2009. [4]. MAGALHÃES, Gustavo Alexandre. “Convênios administrativos: aspectos polêmicos e análise crítica de seu regime jurídico.” Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 2011, p. 67.- Publicado em Notícias